Faleceu ontem. Em Londres, cidade onde viveu a partir de 1961, convidado que foi para ensinar na Slade School of Fine Art, precisamente na escola onde antes, (1956-58), se especializara em Gravura com Anthony Gross.
Tive o privilégio de o ter como amigo. Conheci-o em 2001 por intermédio de Sá Nogueira e recebeu-me algumas vezes no atelier da sua casa na zona histórica de Sintra. Um atelier enorme, repleto de obras de arte, com gavetas atulhadas de gravuras, esquissos e fotografias, sempre com música clássica em surdina, e onde me contou do tempo em que foi estudante da Escola de Belas Artes de Lisboa, nos inicios de cinquenta, dos colegas e amigos com quem empreendeu lutas aí travadas pela dignificação do ensino e pela legalização da Associação de Estudantes. Do MUD Juvenil, a que pertenceu, e das reuniões e convívios que promoveu no enorme casarão onde residia, na Avenida António Augusto de Aguiar, aproveitando a ausência dos pais. Das lutas políticas empreendidas, sobretudo aquando da reunião da NATO em Lisboa, em 1952, e como na sequência disso foi instaurado um inquérito a 81 alunos da ESBAL, entre os quais se incluía, terminando com a expulsão de alguns deles. Das gravuras que faziam, sem assinatura, para venda e angariação de fundos. Dos bailes e convívios culturais na SNBA com o mesmo fim. De como se discutia arte e política e se odiava Salazar. Das tertúlias que se fomentavam nos cafés com destaque para o Café Chiado onde os alunos de Belas Artes assentavam arraiais. Dos espectáculos visto do galinheiro do São Carlos. Do Coro do Lopes Graça e da Sonata e dos recitais de poesia na Academia dos Amadores de Música e na SNBA. Das Gerais de Artes Plásticas, na SNBA. De como a velha Casa dos Artistas, passou a ser o ponto de encontro para todos os artistas oposicionistas. De como se abrigavam clandestinos e se fomentavam cadeias de apoios. Das amizades, das cumplicidades, das solidariedades e de como juntos aprendiam a Vida.
Sempre generoso, ofereceu-me o catálogo autografado daquela que foi a sua primeira exposição individual, em 1959, na SNBA, quando ainda assinava Bartolomeu Cid.
Foi o Bartolomeu quem me revelou o artigo de António Vale (pseudónimo de Alvaro Cunhal) sobre Forma e Conteúdo, publicado na Vértice, em 1953. Emprestou-me a revista que mais tarde devolvi.
Um dia levou-me ao primeiro andar da casa de Sintra, abriu umas das enormes gavetas atulhadas de obras de arte e conseguiu encontrar dois linólios, duas pequenas relíquias editadas pelo MUD Juvenil da Escola de Belas Artes, em 1952, aquando dos incidentes com os estudantes-artistas. Comprara-as. Não estavam assinadas e nenhum de nós conseguiu descortinar a autoria. Sugeri que as doasse ao Museu do Neo-Realismo. Anuiu de imediato. Mas, generoso como era, quis primeiro mandar restaurá-las. Assim fez. Mais tarde haveria de escrever-me e repetir cada vez que falávamos: "tenho lá as gravuras para dar ao Museu do Neo-Realismo!" Creio que lá continuam... na casa de Sintra.
Congratulou-se com o pequeno catálogo que escrevi sobre José Dias Coelho, editado pela CM de Pinhel em 2003, esse colega e amigo com quem se iniciou nas lutas cívico-politicas. Escreveu-me: "que eu saiba, esta é a primeira achega à obra do Zé Coelho. Parece-me no entanto, como aliás mo diz, que a escolha das obras podia ter sido melhor. Também o design deveria ser melhor, muito melhor...". Tinha inteira razão.
Vi-o pela última vez a 10 de Maio do ano passado na inauguração de uma sua exposição na Galeria Ratton, à Rua da Academia das Ciências. Uma exposição lindíssima onde explorava o sagrado (laico) e o profano. Achei-o muito cansado. Mas feliz, rodeado de amigos, alguns de há mais de 50 anos, quando estudantes no velho casarão de São Francisco, como Leonor Sena da Silva, Júlio Moreira, Augusto Sobral, José de Almada, Vasco Croft de Moura, João Vieira e outros.
Falámo-nos pelo 25 de Abril. Não podia estar presente no jantar "Em Abril Esperanças Mil" organizado pela comissão a que eu pertencia. Ia a guiar, como sempre dividido entre a casa de Sintra, nas Escadinhas Fonte da Pipa, e Tavira, essa terra onde tinha o seu espaço privilegiado de trabalho, e onde planeava terminar os dias, abrindo à comunidade um Atelier de Desenho!
Morreu em Londres. Mas vai regressar ao seu país e as cinzas irão ser lançadas no rio que banha a sua amada Tavira.
Que saudades eu sinto desta ínclita geração que o tempo, inexorável, teima em fazer desaparecer. E como fazem falta pessoas como o Bartolomeu!