Bartolomeu Cid dos Santos (1931-2008)
Na passada quarta-feira, dia 21, morreu em Londres Bartolomeu Cid dos Santos. Ia nos setenta e seis anos, solto das coordenadas do tempo, um menino, é verdade, grande e gordo, amante das boas coisas da vida e preocupado com as mais sérias questões da vida. Venho contar-vosda nossa relação de amizade, indissociável do comum amor a Sintra.
Naturalmente, a outros deixo as referências biográficas deste grande nome da arte portuguesa contemporânea. Todavia, imperioso se revela abordar um ou outro aspecto da vida do homem e do artista, especialmente porque tive o privilégio de beneficiar do seu encanto, em doses inesgotáveis, na sábia sedução que imprimia às conversas pelos caminhos da Arte.
Desde logo, mencionaria o pai, o famoso médico Prof. Cid dos Santos, conhecido humanista, homem de grande cultura, a quem o filho muito viria a dever por toda uma formação e educação direccionada para as artes e humanidades. O Bartolomeu menino estudou, por exemplo, música e alemão, absolutamente determinantes para que, mais tarde se revelasse o inevitável melómano em que se tornou.
Apetecia reproduzir episódios que me contou da sua meninice, tantos e tão ilustrativos desse tempo em que, por ser filho de quem era, pôde contactar a fina flor da intelectualidade portuguesa e internacional, nas salas e à mesa da sua casa ou em viagens inesquecíveis e únicas. Como certa deslocação a Paris, com o pai, por essa estrada fora, no automóvel da família, parando em Espanha, a visitar o médico e escritor Gregorio Marañon, em cuja casa foi descobrir uma autêntica e surpreendente galeria, com obras dos mais notáveis artistas, recentes e de épocas passadas.
Um grande melómano
Comigo, Bartolomeu partilhava o gosto pela música. Quando percebeu que, tal como para ele, a língua alemã é, também na minha perspectiva, instrumento inseparável do acesso a particularidades do universo de Wagner, concluiu que podia confessar-me as suas mais remotas experiências pessoais e directas, ainda miúdo, por exemplo, com a Tetralogia do compositor de Bayreuth.
Em especial, falou de certa récita do Siegfried que assistira em São Carlos, em plena guerra, quando o mítico maestro Knappertsbusch veio a Lisboa dirigir a Filarmónica de Berlin, na mesma oportunidade em que alguns músicos desta orquestra tinham jantado em sua casa… Se isto não é privilégio, então desconheço o que isso seja. Mas compreendo que, por causa das invejas, apenas se conte aos iniciados…
Com ele, a conversa nunca era coisa gratuita e, pelo contrário, sempre estimulante e oportunidade para saber mais. Melómanos inveterados, envolvemo-nos em discussões muito vivas e interessantes. Não raro, tive de recorrer à mais diversa documentação e bibliografia, para sustentar ou corrigir alguma opinião, dele ou minha, para esclarecer qualquer dúvida pertinente.
Neste domínio, em diferentes ocasiões, cheguei ao ponto de incomodar um grande amigo, o Dr Mário Moreau que, com o seu enciclopédico conhecimento do mundo da ópera, nos ajudou a clarificar aspectos mais ou menos obscuros que, também frequentemente, se revelavam altamente desafiantes, em diálogos sem fronteiras, em que toda a Arte, desde a poesia, à pintura, à gravura, à música, em que a política e, particularmente, a participação cívica se articulavam em coerente mosaico.
Sintra, uma preocupação
Contudo, muito sintomaticamente, o que nos fez aproximar não foi a melomania. Deu ele o primeiro passo, precisamente por intermédio do Jornal de Sintra, através de um artigo que subscreveu, em simultâneo com uma carta que me dirigiu, a propósito do estado lamentável do centro histórico, coisa que ele sentia na pele, na medida em que a sua casa, nas Escadinhas da Fonte da Pipa, constituía ímpar ponto de partida para a melhor avaliação.
O Bartolomeu era homem de esquerda, senhor de fortes convicções políticas. Como alguns de nós, mas contra a opinião dos mais poderosos, acreditava na capacidade de mudar a polis, através da participação em lutas de intervenção cívica, na possibilidade de viver uma vida democrática que ultrapasse a retórica dos discursos inconsequentes e se comprometa com as pessoas, com os seus problemas reais e concretos.
Uma das causas que mais o mobilizava era a da defesa e preservação do património, questão bem real e concreta que, inequivocamente – se for perspectivada numa actuação integrada e abrangente – pode contribuir para a mudança em geral e para a melhoria da qualidade de vida em particular. Se alguma prova necessária fosse, demonstrativa do seu empenho, bastaria recordar o apoio pessoal à iniciativa da discussão dos problemas do bairro da Estefânea. Tive-o, exactamente ao meu lado, na mesa que conduziu o aceso debate daquele dia 22 de Março de 2004…
Tinha a família entranhada em Sintra há várias gerações, não estava sempre por aqui mas, quando estava, adorava. E, muito naturalmente, também sofria, como só pode quem assiste à contínua degradação desta sede de concelho que, afirmava ele constantemente, merece outro cuidado, uma gestão adequada às características, ao perfil e ao espírito do lugar.
O artista empenhado
Era um grande senhor da Cultura Portuguesa dos nossos dias. Há mais de cinquenta anos, fundara a Gravura, sociedade cooperativa de artistas gráficos que, em termos concretos e práticos, constituía uma entidade cujos objectivos eram afins da sua postura e filiação política. Como lembrava José Cutileiro, no Expresso do sábado passado, pelos seus dezassete anos, Bartolomeu era já um jovem comunista, capaz de pôr a tocar A Internacional, no ‘pick up’ aos berros, em manobra provocatória…
Mesmo em termos internacionais, Barto – como era conhecido lá por fora – é um nome incontornável da gravura, tão grande e significativo que os ingleses lhe souberam reconhecer o enorme mérito, admitindo-o como professor da célebre Slade School of Fine Arts de Londres, já no princípio dos anos sessenta, ali se mantendo até noventa e seis, altura em que se aposentou. Altamente honrosa, a sua nomeação como professor emérito de Arte da Universidade de Londres e membro da Real Sociedade Britânica de Pintores e Gráficos.
Detentor de um currículo espantoso, foi professor convidado e consultor de várias universidades europeias, fez inúmeras exposições por esse mundo. A fundação Gulbenkian que, como é sabido, não dá ponto sem nó, e só mesmo aos muito grandes dá a honra da promoção de exposições retrospectivas, concretizou uma sobre a obra de Bartolomeu Cid dos Santos cuja concepção era extremamente interessante, tendo constituído assinalável sucesso.
Que homenagem?
Em cerca de três meses, deixaram-nos dois nomes máximos das Artes e Letras portuguesas. Só a sintrense universal incultura se pode permitir não dar o devido destaque à perda de Maria Gabriela Llansol e Bartolomeu Cid dos Santos. Pensar que a sua memória se honra com o minuto de silêncio da ordem, não passa de brincadeira com coisas sérias…
Aliás, depois de tão atrabiliárias concessões de medalhas de ouro do concelho, a figuras totalmente insignificantes cá do burgo, também não imagino o que poderá a Câmara fazer… Uma coisa eu sei, que várias vezes me confessou. Dar-lhe-ia muita alegria ver recuperada a casa de Mily Possoz [será que esta gente dois serviços alguma vez ouviu falar dela?...], outra grande mas esquecida artista, que morreu em Sintra em 1967. Era sua vizinha. Se for necessário, podem contar comigo para lá ir indicar onde fica.
Cá por mim, à guisa de pessoal celebração, mal acabe de escrever este texto, tenho preparado o leitor de CD para ouvir o Acto III de Götterdämmerung (Crepúsculo dos Deuses) de Richard Wagner. Vou escutar este sublime momento da ópera, sob direcção e na leitura de Sir Georg Solti, 1973, dirigindo a Filarmónica de Viena, em que Birgit Nilson, Wolfgang Windgassen, Dietrich Fischer-Dieskau, Christa Ludwig Luccia Popp, e Gwyneth Jones assumem, respectivamente, as personagens de Brünnhilde, Siegfried, Gunther, Waltraute, Woglinde e Wellgunde.
O Bartolomeu tinha esta versão em lugar altíssimo. Para mim, constitui referência máxima. Neste ramalhete das maiores estrelas, há interpretações inultrapassáveis, perfeitamente paradigmáticas, intemporais. Ah, vou acompanhar a audição bebendo um Collares que, pois claro, já está aberto, já foi provado e aprovado. E tenho a certeza de que o Bartolomeu também aprovará esta minha celebração da Vida, da Arte e da Cultura (maiúsculas, à alemã…) com um copo do nosso melhor vinho.
À nossa querida Sintra! Até já, Bartolomeu…