"That was due to Crabtree's expertise and flair during a wine tasting that lasted until sunrise, and that is still remembered in the neighbouring town of 'Vila Real´as the "Night of the Englishman', that Don José Mateus first realised the potential of his Estate's Rosés as suitable for the English palate"

Santos, Bartolomeu dos, 'Joseph Crabtree and the Caliph of Fonthill', 1985, in The Crabtree Orations (1954-1984), ed. Brian Bennett & Negley Harte, The Crabtree Foundation, London, 1997
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27.5.08

Do blog "Sintra do avesso" por João Cachado

Bartolomeu Cid dos Santos (1931-2008)

Na passada quarta-feira, dia 21, morreu em Londres Bartolomeu Cid dos Santos. Ia nos setenta e seis anos, solto das coordenadas do tempo, um menino, é verdade, grande e gordo, amante das boas coisas da vida e preocupado com as mais sérias questões da vida. Venho contar-vosda nossa relação de amizade, indissociável do comum amor a Sintra.

Naturalmente, a outros deixo as referências biográficas deste grande nome da arte portuguesa contemporânea. Todavia, imperioso se revela abordar um ou outro aspecto da vida do homem e do artista, especialmente porque tive o privilégio de beneficiar do seu encanto, em doses inesgotáveis, na sábia sedução que imprimia às conversas pelos caminhos da Arte.

Desde logo, mencionaria o pai, o famoso médico Prof. Cid dos Santos, conhecido humanista, homem de grande cultura, a quem o filho muito viria a dever por toda uma formação e educação direccionada para as artes e humanidades. O Bartolomeu menino estudou, por exemplo, música e alemão, absolutamente determinantes para que, mais tarde se revelasse o inevitável melómano em que se tornou.

Apetecia reproduzir episódios que me contou da sua meninice, tantos e tão ilustrativos desse tempo em que, por ser filho de quem era, pôde contactar a fina flor da intelectualidade portuguesa e internacional, nas salas e à mesa da sua casa ou em viagens inesquecíveis e únicas. Como certa deslocação a Paris, com o pai, por essa estrada fora, no automóvel da família, parando em Espanha, a visitar o médico e escritor Gregorio Marañon, em cuja casa foi descobrir uma autêntica e surpreendente galeria, com obras dos mais notáveis artistas, recentes e de épocas passadas.

Um grande melómano

Comigo, Bartolomeu partilhava o gosto pela música. Quando percebeu que, tal como para ele, a língua alemã é, também na minha perspectiva, instrumento inseparável do acesso a particularidades do universo de Wagner, concluiu que podia confessar-me as suas mais remotas experiências pessoais e directas, ainda miúdo, por exemplo, com a Tetralogia do compositor de Bayreuth.

Em especial, falou de certa récita do Siegfried que assistira em São Carlos, em plena guerra, quando o mítico maestro Knappertsbusch veio a Lisboa dirigir a Filarmónica de Berlin, na mesma oportunidade em que alguns músicos desta orquestra tinham jantado em sua casa… Se isto não é privilégio, então desconheço o que isso seja. Mas compreendo que, por causa das invejas, apenas se conte aos iniciados…

Com ele, a conversa nunca era coisa gratuita e, pelo contrário, sempre estimulante e oportunidade para saber mais. Melómanos inveterados, envolvemo-nos em discussões muito vivas e interessantes. Não raro, tive de recorrer à mais diversa documentação e bibliografia, para sustentar ou corrigir alguma opinião, dele ou minha, para esclarecer qualquer dúvida pertinente.

Neste domínio, em diferentes ocasiões, cheguei ao ponto de incomodar um grande amigo, o Dr Mário Moreau que, com o seu enciclopédico conhecimento do mundo da ópera, nos ajudou a clarificar aspectos mais ou menos obscuros que, também frequentemente, se revelavam altamente desafiantes, em diálogos sem fronteiras, em que toda a Arte, desde a poesia, à pintura, à gravura, à música, em que a política e, particularmente, a participação cívica se articulavam em coerente mosaico.

Sintra, uma preocupação

Contudo, muito sintomaticamente, o que nos fez aproximar não foi a melomania. Deu ele o primeiro passo, precisamente por intermédio do Jornal de Sintra, através de um artigo que subscreveu, em simultâneo com uma carta que me dirigiu, a propósito do estado lamentável do centro histórico, coisa que ele sentia na pele, na medida em que a sua casa, nas Escadinhas da Fonte da Pipa, constituía ímpar ponto de partida para a melhor avaliação.

O Bartolomeu era homem de esquerda, senhor de fortes convicções políticas. Como alguns de nós, mas contra a opinião dos mais poderosos, acreditava na capacidade de mudar a polis, através da participação em lutas de intervenção cívica, na possibilidade de viver uma vida democrática que ultrapasse a retórica dos discursos inconsequentes e se comprometa com as pessoas, com os seus problemas reais e concretos.

Uma das causas que mais o mobilizava era a da defesa e preservação do património, questão bem real e concreta que, inequivocamente – se for perspectivada numa actuação integrada e abrangente – pode contribuir para a mudança em geral e para a melhoria da qualidade de vida em particular. Se alguma prova necessária fosse, demonstrativa do seu empenho, bastaria recordar o apoio pessoal à iniciativa da discussão dos problemas do bairro da Estefânea. Tive-o, exactamente ao meu lado, na mesa que conduziu o aceso debate daquele dia 22 de Março de 2004…

Tinha a família entranhada em Sintra há várias gerações, não estava sempre por aqui mas, quando estava, adorava. E, muito naturalmente, também sofria, como só pode quem assiste à contínua degradação desta sede de concelho que, afirmava ele constantemente, merece outro cuidado, uma gestão adequada às características, ao perfil e ao espírito do lugar.

O artista empenhado

Era um grande senhor da Cultura Portuguesa dos nossos dias. Há mais de cinquenta anos, fundara a Gravura, sociedade cooperativa de artistas gráficos que, em termos concretos e práticos, constituía uma entidade cujos objectivos eram afins da sua postura e filiação política. Como lembrava José Cutileiro, no Expresso do sábado passado, pelos seus dezassete anos, Bartolomeu era já um jovem comunista, capaz de pôr a tocar A Internacional, no ‘pick up’ aos berros, em manobra provocatória…

Mesmo em termos internacionais, Barto – como era conhecido lá por fora – é um nome incontornável da gravura, tão grande e significativo que os ingleses lhe souberam reconhecer o enorme mérito, admitindo-o como professor da célebre Slade School of Fine Arts de Londres, já no princípio dos anos sessenta, ali se mantendo até noventa e seis, altura em que se aposentou. Altamente honrosa, a sua nomeação como professor emérito de Arte da Universidade de Londres e membro da Real Sociedade Britânica de Pintores e Gráficos.

Detentor de um currículo espantoso, foi professor convidado e consultor de várias universidades europeias, fez inúmeras exposições por esse mundo. A fundação Gulbenkian que, como é sabido, não dá ponto sem nó, e só mesmo aos muito grandes dá a honra da promoção de exposições retrospectivas, concretizou uma sobre a obra de Bartolomeu Cid dos Santos cuja concepção era extremamente interessante, tendo constituído assinalável sucesso.

Que homenagem?

Em cerca de três meses, deixaram-nos dois nomes máximos das Artes e Letras portuguesas. Só a sintrense universal incultura se pode permitir não dar o devido destaque à perda de Maria Gabriela Llansol e Bartolomeu Cid dos Santos. Pensar que a sua memória se honra com o minuto de silêncio da ordem, não passa de brincadeira com coisas sérias…

Aliás, depois de tão atrabiliárias concessões de medalhas de ouro do concelho, a figuras totalmente insignificantes cá do burgo, também não imagino o que poderá a Câmara fazer… Uma coisa eu sei, que várias vezes me confessou. Dar-lhe-ia muita alegria ver recuperada a casa de Mily Possoz [será que esta gente dois serviços alguma vez ouviu falar dela?...], outra grande mas esquecida artista, que morreu em Sintra em 1967. Era sua vizinha. Se for necessário, podem contar comigo para lá ir indicar onde fica.

Cá por mim, à guisa de pessoal celebração, mal acabe de escrever este texto, tenho preparado o leitor de CD para ouvir o Acto III de Götterdämmerung (Crepúsculo dos Deuses) de Richard Wagner. Vou escutar este sublime momento da ópera, sob direcção e na leitura de Sir Georg Solti, 1973, dirigindo a Filarmónica de Viena, em que Birgit Nilson, Wolfgang Windgassen, Dietrich Fischer-Dieskau, Christa Ludwig Luccia Popp, e Gwyneth Jones assumem, respectivamente, as personagens de Brünnhilde, Siegfried, Gunther, Waltraute, Woglinde e Wellgunde.

O Bartolomeu tinha esta versão em lugar altíssimo. Para mim, constitui referência máxima. Neste ramalhete das maiores estrelas, há interpretações inultrapassáveis, perfeitamente paradigmáticas, intemporais. Ah, vou acompanhar a audição bebendo um Collares que, pois claro, já está aberto, já foi provado e aprovado. E tenho a certeza de que o Bartolomeu também aprovará esta minha celebração da Vida, da Arte e da Cultura (maiúsculas, à alemã…) com um copo do nosso melhor vinho.

À nossa querida Sintra! Até já, Bartolomeu…