"That was due to Crabtree's expertise and flair during a wine tasting that lasted until sunrise, and that is still remembered in the neighbouring town of 'Vila Real´as the "Night of the Englishman', that Don José Mateus first realised the potential of his Estate's Rosés as suitable for the English palate"

Santos, Bartolomeu dos, 'Joseph Crabtree and the Caliph of Fonthill', 1985, in The Crabtree Orations (1954-1984), ed. Brian Bennett & Negley Harte, The Crabtree Foundation, London, 1997
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4.6.08

Bartolomeu Marinheiro

In "JL-Jornal de Letras, Artes e Ideias", 4.6.08

Estou com cinquenta e tal anos e em férias sabáticas, coisas que nunca me tinham acontecido ao mesmo tempo. E foi assim que pude aceitar a hospitalidade do meu bom amigo Bartolomeu Cid dos Santos, na sua bela casa mais amada do que usada, entre serras que não mudam nunca e águas do mar que nunca estão quedas. Excepto que, sendo Primavera e o mar ficando ainda longe, basta ir ao terraço para constatar que são as serras de Sintra que diariamente se transformam e as águas da Praia Grande que parecem sempre fixas. Não se deve ter demasiada confiança em metáforas em segunda mão.

Foi isto em 1990, e é assim que começa o meu romance Partes de África, publicado no ano seguinte, com capa, é claro, do Bartolomeu. Além da casa e das metáforas havia, por toda a parte, a presença ausente do meu generoso anfitrião, que discretamente se deixara ficar em Londres enquanto eu escrevia, mas que estava em tudo que ali me rodeava. Quem conhece o Bartolomeu sabe que ele é - recuso-me a usar o pretérito - sabe que ele é um coleccionador de memórias, até de si próprio. Havia uma tapeçaria renascentista e ex-votos de capelas de província, o modelo de um longo veleiro de três mastros, louças da Companhia das Índias e um grande prato com um projecto da bandeira da República no centro, a esfera armilar rodeada pela divisa “Ordem e Trabalho”, à maneira brasileira. E, em cima de um contador, entre retratos e uma miríadade de objectos, um postal, em letra infantil, que começava: “Meu bom Amigo”. O “bom Amigo” era o Afonso Lopes Vieira, que oferecera ao pequeno Bartolomeu (de nove anos?) aquele seu livro onde há um poema a dizer que o mar era dantes um quarto escuro onde os meninos tinham medo de ir. E que termina dizendo que foi um português que o foi abrir. Mau poema, óptimos sentimentos. Depois da morte do probo Afonso, o postal voltara para o remetente. Obviamente que o poeta do quarto escuro apreciara o postal, tinha-o preservado. E certamente não tanto por esse “Meu bom Amigo” de boas maneiras precoces, ou pelo que o texto dizia e que se calhar a mãe ou o pai disseram que o menino devia dizer, mas porque terminava com a assinatura espontânea e decidida: “Bartolomeu Marinheiro”. E, por baixo, o desenho de um barco, a lápis de cor.

Há muitos barcos nas gravuras do Bartolomeu. Em 1961, fez uma exposição em Lisboa que incluía uma das suas melhores gravuras de sempre, “Portuguese Man of War”. É uma nave num mar pontuado por alforrecas a explodirem em volta. Dentro da nave, dois militares, um bispo, uma mulher, uma boneca de criança. O título é intraduzível: em inglês, designa uma espécie particularmente venenosa de alforreca. Mas ninguém, em Portugal, terá tido dificuldade em traduzir a imagem dessa nave singrando num escuro mar de alforrecas explosivas. É, que eu saiba, a primeira obra da iconografia portuguesa contra as guerras coloniais. Bartolomeu é um artista socialmente empenhado. A sua arte foi sempre – quase sempre – um acto de intervenção que pressupõe uma perspectiva ideológica e, portanto, também política. Mas por isso ele também é, e sempre foi, um viajante em mundos alternativos: cidades imaginárias, jardins expectantes, corpos desejados, espelhos mágicos, labirintos, mares de sereias. E fez um retrato de Fernando Pessoa – “Fernando Pessoa Antes de Ser Grande” – como um menino (de nove anos?) com camisa de marujo (emprestada pelo Bartolomeu?). Pois é: todos os artistas falam do mundo e dos outros a partir de si próprios.

Parece que, quando se está a morrer, a última coisa que vai é a capacidade de ouvir. Foi o que disse a enfermeira, uma chéca loira e muito bela, que há vinte anos vê a morte todos os dias e ainda não se habituou. Além dela, estávamos quatro com o Bartolomeu: a Fernanda, a Kate, a Paula e eu. Ele estava ligado a tubos e com aquela máscara transparente que põem sobre o nariz e a boca para as máquinas irem respirando em vez de quem já não consegue. Parecia uma máscara de aviador, como nos spitfires dos filmes de outros heroísmos, não de marinheiro. Cada um de nós tinha um pedaço de braço ou de mão por conta, para ele sentir que não estava a ir sòzinho. E íamos dizendo coisas, disparates, o que conseguíamos, caso ainda ouvisse: “Ah, Bartolomeu Marinheiro, vê lá isso, rapaz!”. Às dez horas e trinta e cinco a enfermeira chéca desligou as máquinas.


Helder Macedo