"That was due to Crabtree's expertise and flair during a wine tasting that lasted until sunrise, and that is still remembered in the neighbouring town of 'Vila Real´as the "Night of the Englishman', that Don José Mateus first realised the potential of his Estate's Rosés as suitable for the English palate"

Santos, Bartolomeu dos, 'Joseph Crabtree and the Caliph of Fonthill', 1985, in The Crabtree Orations (1954-1984), ed. Brian Bennett & Negley Harte, The Crabtree Foundation, London, 1997
.
.

14.8.08

Mentiras, Loucuras e Mortes

Manuel Augusto Araújo, in "Avante!", 14.8.2008


(a propósito de)
SINAIS DOS TEMPOS
Bartolomeu Cid dos Santos
Pintura/Gravura/Instalação
Galeria Municipal Artur Bual / Amadora


«Toda a arte traz o cunho da sua época histórica, mas a grande arte é aquela em que esse cunho está mais profundamente marcado»
Henri Matisse, Escritos sobre Arte

«(…) Panurgo, sem dizer nada, lança ao mar alto o seu carneiro que guincha e bale. Todos os outros carneiros, guinchando e balindo no mesmo tom, começaram depois a saltar e a lançar-se ao mar um após outro. Depois de o primeiro ter saltado, todos os outros o seguiram. Não era possível impedi-los, pois como sabeis, é da natureza dos carneiros seguirem sempre o primeiro, para onde quer que este vá. Assim diz Aristóteles, liv. IX, de História Animal, chamando-lhe o mais insensato e imbecil animal do mundo.»
Rabelais, O Quarto Livro dos Feitos e Ditos Heróicos do Bom Pantagruel

«O sono da razão engendra monstros»
Goya

A obra de Bartolomeu dos Santos é de grande singularidade no quadro da arte contemporânea. Percorre-a uma inquietação sem limites que o faz mergulhar na aventura do mundo para o interrogar e questionar em todos os azimutes. Propõe questões que problematizam as relações entre o mundo colectivo e o mundo individual, os encontros e desencontros do consciente e do subconsciente fluindo sem desfalecimentos na areia da ampulheta do tempo, «O tempo presente e o tempo passado / são, talvez, presente no tempo futuro / e o tempo futuro contido no tempo passado» (T. S. Elliot referido por Bartolomeu dos Santos). Do tempo exterior padronizado, medido normativamente e do tempo interior que se mede idiossincraticamente com a razão e com a paixão. Essa tessitura do tempo é sinalizada por Bartolomeu com obras de arte onde cintilam ideias, mistérios, memórias, homenagens, viagens, indignações, acusações. São uma volta ao mundo em todos os dias.

Não existem fronteiras entre Gutte Nacht, a pretexto da Viagem de Inverno, uma homenagem vibrante a Schubert, e Um Amante e Zeloso da Pátria, ave de rapina ameaçando Portugal de Abril, ou entre as diversas gravuras inspiradas pela Ode Marítima e a extraordinária Homenagem a Cesário Verde, onde as muitas referências literárias e visuais iluminam o retrato esbatido do poeta, e a Barca dos Loucos, O Guerreiro Lusitano ou as sequências de batalhas presentes nesta exposição e que, sendo uma denúncia mais imediata e evidente do estado de guerra contínua de baixa intensidade com que o império agonizante e sem fim previsto procura assegurar o futuro, são sobretudo denúncias da imoralidade da mentira não só por violar a verdade mas, sobretudo, por se ter transformado na insolência arrogante de nos tomar por insensatos e imbecis.

E não existem fronteiras porque para Bartolomeu as obras de arte são na sua essência cosmopolitas, defendem a liberdade de espírito, o poder criador do indivíduo frente à tirania do gosto massificado, são parceiras das inovações das ciências e das técnicas, estão do lado dos valores democráticos e revolucionários. Obras de arte que, hoje como antigamente, devem ser um testemunho, não fugaz nem pobre, da vida em toda a sua dimensão.

Em tempo de vacuidades e vulgaridades, a obra de Bartolomeu, e está muito bem acompanhado em todo o mundo, não participa da decadência artística em que se tropeça por todo o lado e em todos os lados, sustentada por um aparelho conceptual de requentados clichés apresentados como novidade, maquilhagem espessa que tapa e disfarça a pele enrugada de conceitos velhos e relhos, com a febrilidade sonambúlica da curiosidade de procurar com forçada avidez o novo para saltar para outro novo, sem se demorar em lado algum, como já havia sido tão bem descrito por Santo Agostinho e que Gadamer precisou «(…) uma curiosidade que provoca o tédio e o esgotamento, porque no fundo, o seu objecto não diz respeito a ninguém. Não há qualquer sentido para o espectador. Não existe nada nesse objecto que convide o espectador a voltar a ele realmente, nada em que possa concentrar-se. A qualidade formal da novidade é, com efeito, a alteridade abstracta». Experiências artísticas que se impõem como juiz de si próprias, autolegitimando-se, doxa que se inscreve no quadro actual da ideologia dominante e que são o kitsh do aparato ideológico totalitário do pensamento único.

Uma nebulosa inquietante e de decadência artística que Nietzsche premonitoriamente tinha descrito «(…) pelo facto da vida já não animar o todo. A palavra torna-se soberana e irrompe fora da frase, que transborda e obscurece o sentido da página, e a página ganha vida em detrimento do conjunto: o todo já não forma um todo. Mas esta imagem vale para todos os tipos de décadence: é, sempre, anarquia dos átomos, desagregação da vontade. (…) Em toda a parte, a paralisia, a fadiga, o entorpecimento ou então a inimizade e o caos (…) O todo já não tem qualquer vida: é compósito, calculado, artificial, um artefacto.»

Se, com o propósito de facilitar o entendimento, a obra de Bartolomeu for sistematizada por temas, obtém­‑se uma estimulante abordagem, caminho para uma profunda análise académica, mas perde-se a perspectiva da sua inserção no movimento histórico e a compreensão ideológica do seu tempo que se consegue ordenando­‑a cronologicamente, entendendo-se que as ideologias são as ideias, os valores e os sentimentos através dos quais os homens tomam consciência, nas diversas épocas, da sociedade em que vivem e que, algumas dessas ideias, valores e sentimentos só são acessíveis pela arte, o que é bem evidente em toda a obra de Bartolomeu dos Santos.

Homem culto e erudito, artista do seu tempo e do seu mundo em que a visão filosófica, política e poética acompanha a evolução estética e formal, sendo tudo sempre integrado no trabalho que mantém em ritmo intenso. Olhem-se os labirintos e as esferas que irrompem nas gravuras de Bartolomeu nos anos 70, provocando inquietudes e interrogações tão peremptoriamente decisivas para visitar o mito da Atlântida (Atlantis, Atlantis Revisited, The End of Atlantis) como para anunciar os mistérios de The Visitor, Figure in Space, Great Monolith ou para perscrutar as leituras do Mare de Guine, The Future of Gold is Assured e Tratado de Tordesilhas. Tal como o são as múltiplas referências literárias, cinematográficas, visuais, de memórias e viagens, de almoços e conversas que se incorporam com naturalidade na vasta obra artística de Bartolomeu sem sofrer descontinuidades e de passo sempre acertado com o tempo. Uma obra artística que não aceita o mundo como ele é. Que o recria, revelando a sua natureza de produto construído. E ao comunicar essa consciência de energia produtiva a quem olha para as suas obras, Bartolomeu está a acordar neles energias semelhantes em vez de se limitar a satisfazer os seus desejos de consumidores.

Nesta exposição, intitulada Sinais dos Tempos, a primeira nota é para rejeitar liminarmente qualquer tentativa de a menorizar na base da falsa distinção entre arte e propaganda ou da arte e política, separação que contumazmente a critica presunçosa e burguesa faz. Distinção que colocaria fora dos parâmetros do que é arte artistas como Vertov, Meyerhold, Malevitch, Eisenstein, Piscator, Maiakovski, Shostakovich, Brecht, entre tantos outros que nos estão temporalmente próximos ou de Michelangelo (a Capela Sistina não será uma notável obra de propaganda e glorificação do deus católico?) ou Gericault ou etc. Defenda-se que toda a arte é progressista e que a arte fechada aos movimentos históricos-sociais da sua época, divorciada de uma consciência do que é historicamente central relega-se a si própria para um estatuto secundário. Tese decorrente é a que Ernst Fischer e de outro modo Walter Benjamim explanam de que a arte transcende sempre os limites ideológicos da sua época, dando uma percepção das realidades que se encontra ocultada pela ideologia. Acontece, muitas vezes acontece, que isso seja produzido por artistas politicamente conservadores como Ezra Pound, Lawrence ou Bacon, muitíssimo distanciados de uma arte genuinamente revolucionária mas que opõem o seu conservadorismo radical aos valores caducos da sociedade burguesa liberal, o que se enquadra no princípio da contradição formulado por Marx e Engels nas análises ao desenvolvimento económico da sociedade capitalista, e que os mesmos transpuseram quando se detiveram nas artes afirmando claramente que «as ideias políticas de um autor podem estar em oposição àquilo que a sua obra objectivamente revela». Donde se infere que a questão de saber ou medir quão progressista deve ser uma obra de arte para ser válida é uma questão histórica que não pode ser resolvida dogmaticamente, como o quiseram fazer Estaline ou Mao-Tsé-Tung, provocando uma devastadora ofensiva contra as artes e afundando-se no pior reaccionarismo ideológico, sustentado teoricamente numa vulgata marxista-leninista desviante.

Olha-se para estas pinturas, para estas gravuras, para estes dois objectos escultóricos de que nos podemos aproximar com o fascínio de quem se aproxima de barco de Nova-Iorque e vê crescer para si a estátua da Liberdade para de golpe ser chamado à realidade acordado do sonho pela imagem da esperança de Chaplin a ser amarrada em molho com a dos outros emigrantes. Aqui também somos imediatamente chamados à realidade pelo enorme impacto visual dessas duas formas de enorme estranheza onde já mal se reconhece a imagem original corroída pelo tempo, perfurada de balas a que serviram de alvo. Estão implantadas em plintos, caixotes contentores cujo conteúdo é revelado pelos rótulos. Um descrimina todas as invasões directas dos Estados Unidos da América a outros países e deixa-se, cautelarmente, espaço branco para acrescentar a próxima. Outro promete férias no campo de concentração de Guantánamo, pedaço de território de Cuba ocupado pelos americanos. Cuba que curiosamente foi a ilha que albergou o primeiro campo de concentração do mundo, em 1896, quando era colónia espanhola.

Uma primeira visão desta exposição, para se ir à profundeza do que se vê, enfrentando a dureza do tema confrontado com a delicadeza do traço, com a suavidade das velaturas, lembra-nos a relação de Perseu com a Medusa, como Ovídio relata (liv. IV) nas Metamorfoses. Não se pode enfrentar directamente a Medusa, cujo olhar transforma em pedra tudo o que fixa. Perseu, orientando o combate pelo que vê no metal polido do seu escudo, decapita-a. Agarra a cabeça do monstro pela cabeleira de serpentes, regressa a casa. No caminho detém­‑se num rio para lavar as mãos. Tem que pousar a cabeça para que o olhar da Medusa não prossiga o seu trabalho maléfico. Perseu delicadamente faz, em cima da areia grossa, uma cama de folhas e algas nascidas debaixo de água onde depõe a cabeça da Górgona de cara para baixo. O extraordinário é que quando o herói recolhe a cabeça do monstro, as algas em contacto com o olhar da Medusa tinham-se transformado em corais.

Conhecerá Bartolomeu esta Metamorfose de Ovídio? Homem de tantos saberes e conhecimentos provavelmente conhece-a, mas o que é certamente mais provável é não se ter apercebido que quando empreendia este trabalho estava, com delicadeza só comparável à de Perseu, a construir uma barreira de coral para isolar o monstro incorpóreo que nos assalta os dias, desmontando as brutalidades, as manipulações de quem «quer governar, e continuar a governar, (pelo que) tem de ser capaz de alterar o sentido da realidade» (G. Orwell). A barreira de coral que Bartolomeu construiu e continua a construir defende a realidade de perder o norte, de deixar de se reconhecer entre verdades e mentiras. Não deixa adormecer a razão.

Aqui, nesta exposição, obra a obra, Bartolomeu dos Santos, centrando-se nas intervenções dos Estados Unidos da América no Médio-Oriente, desconstrói com ironia e indignação a longa tradição de os EUA se considerarem nação redentora, usando esse conceito para promoverem a pilhagem do mundo em proveito próprio e imporem o seu modelo ao mundo, construindo uma pirâmide de juízos simplistas que ignoram as dúvidas dialécticas, as angústias de Hamlet, o desassossego de Pessoa, para se contentarem com a platitude de Mickey Mouse.

Rato assexuado, amante da fast-food, alegremente banal, de sangue tépido e personalidade temperada é despido por Bartolomeu para mostrar o ser maléfico que as aparências escondem e ei-lo que salta da barca de Nosferatu para com violência destruir, invadir, ser chefe, cumprir ordens, organizar reuniões enquanto Bush estuda as obras de Pirro, Miss América Sucks, ou um herói sem cabeça para sustentar o chapéu colonial enterra em terra conquistada um padrão encimado por uma águia de olhar perdido que não consegue ver nova versão de The Triumph of the Will porque Leni Riefenstal já não tem sopro de vida para chegar a esta batalha. Tudo decorre naquele ambiente de guerra estranho, brutal, difuso que conhecemos de Apocalipse Now, de Platoon, de Full Metal Jacket e que Bartolomeu recupera pontuando-o com referências a Beckett, Conrad, grafittis que recolheu, entre outros locais, nos bunkers da Ilha Terceira, memórias de Samarra, da Torre de Babel, do olhar doce de uma árabe que se escapa do chaddor, das palmeiras e do cheiro a petróleo e do som dos helicópteros que mancham um céu que deveria ter existido antes destes enxames malfazejos o alterarem.

Muitas das imagens que surgem nestas obras estão vulgarizadas pelos media e a habituação entorpece o juízo, como assinalava Montaigne, mas aqui adquirem a força de nos esmurrarem o quotidiano. Um helicóptero que sai de um ecrã de televisão quase sem darmos por ele, entra numa gravura ou numa pintura de Bartolomeu e torna­‑se num vírus mortal que nos ameaça. O nosso juízo é desperto, duplamente desperto: para a intimação e para a obra de arte que nunca perde a sua identidade.

Com o imenso saber de anos a fazer incisões em placas de metal com ácidos e pontas secas elaborando imagens que se transportam para os papéis, retornando aos pincéis e às tintas que tinha deixado repousar mais de trinta anos, Bartolomeu dos Santos escreve estas páginas da história trazendo-as para a história de arte, surpreendendo pelas audácias formais caldeadas pela inclusão de referências eruditas que nunca são supérfluas e que tornam para nós o seu pensamento mais claro, mais lógico, fazendo com que cada obra produza um acréscimo de conhecimento estético e ideológico.